Uma história aleatória

Verde voraz







            Essa é a história de como uma dieta e suas aplicações sociais, forçadas goela abaixo das academias e da ciência, causou a destruição da humanidade como a conhecemos.
            Não pense que há chance de escapar: eles vão te achar, e se você tiver qualquer traço de clorofila, será devorado.
            Haverá nomes fictícios, lugares falsos inventados para o contexto da história, mas o mundo, é o nosso, o real. Tão real quanto se pode querer numa ficção, não é?
            O maldito Word há de fingir que existem correções a serem feitas, mas como falta a habilidade de interpretação de texto num software, apenas finja que as linhas de “erro” não estão aí.
            Enfim, aproveite.

Assinado: O Pendragon.














                                              
Capítulo 1: Semear



           
“ Meu nome é Jordan Miller”, ele escrevia com a mão trêmula num caderno velho que fora capaz de encontrar numa loja abandonada, usando uma caneta cuja tinta não tinha secado, “e eu sou culpado pelo fim do mundo. Talvez não o culpado direto, mas eu poderia ter evitado se tivesse tripas pra lidar com a imbecilidade dos que me rodeavam. Hoje, três anos depois, ainda convivo com o pesadelo do pecado que cometi, a omissão. Eu tinha tudo, família, amigos, um bom emprego, mas tudo perdido porque fui covarde demais pra agir quando precisaram de mim.
            Aqui, neste mundo de sociedade encerrada pela fome, eu caço o que posso, fujo como posso, esterilizo a própria pele com fogo quando tenho a oportunidade pra me livrar de qualquer traço de clorofila ou esporos que venham a entrar em contato comigo. Ainda há carne, o que é bom, mas pouco a pouco, tudo começa a ficar verde.
            Se alguém, em algum lugar, for mais forte do que eu em sobreviver, quero que encontre este caderno, este registro. Uma confissão. Um relato de como tudo começou, e de como eu poderia ter evitado tudo em quatro situações diferentes. Fui tolo de achar que ela tinha a solução, a cura, mas não era e eu fui covarde demais pra impedir que ela seguisse com seu plano desgraçado. Hoje, tudo se infecta pouco a pouco pra alimentar a maldita necessidade desses desgraçados...”




           
Era uma manhã comum de quinta-feira, como qualquer outra, em Boston, Capital de Massachusetts. As padarias abriam, lavanderias abriam as portas em seus bairros, o trânsito começava a fazer barulho com a movimentação do cotidiano. O trabalho nas obras nunca parava, o maquinário rugindo e tremendo. Calçadas de cimento fazendo o som dos calçados dos pedestres. Em uma das cidades mais populosas dos EUA, todos os dias eram assim. Uma agitação constante.
            Para Jordan Miller, era outro dia desafiando a depressão constante que lhe afligia desde que a esposa morrera e a filha adoecera. Trabalhava de professor universitário, ganhava bem, e mesmo a conta do hospital ser grande, não via problemas em pagá-la, pois não ficava prejudicado. Os tratamentos que sua filha, Moly, recebia constantemente, a mantinham viva, mas sem sinal de cura aparente. Ainda se lembraria do dia em que foram ao Burger Jack, experimentar um novo lanche feito a base de soja e outras verduras. Um hambúrguer de “carne sintética, 100% vegetal e sem sangue de animais inocentes”. Ele odiara o sabor abominável e a textura pastosa daquele negócio, mas sua filha, criança que era com seus oito anos de idade, ignorou as reclamações do pai e continuou comendo. Um, dois, três desses lanches medonhos. No dia seguinte, estava com dores estomacais. Ficou de cama. No próximo dia, Jordan levou a menina às pressas para o pronto socorro no Hospital Memorial Howard Preston. Lá, ela foi internada com estado de urgência.
            Descobriram que os lanches possuíam uma quantidade assustadora de um composto químico que imitava o sabor da carne. E Jordan descobriu que sua filha tinha uma alergia leve ao mesmo, mas com três lanches, seu corpo se deteriorou rapidamente. Os médicos não sabiam se havia cura, pois a alergia dela trabalhava de forma vagarosa, tal como um câncer. Poderiam dizer que ela era o “paciente zero” de uma nova alergia que não envolvia inchaço dos músculos, externos ou internos, uma alergia terrivelmente dolorosa que matava aos poucos e precisava de tratamento constante. Várias vezes os médicos ligavam para seu celular e pediam que comprasse certos remédios, alguns experimentais, outros comprovados na eficácia, que atrasavam o estado de saúde precário da menina de piorar.
            Mas sem melhoras significativas.
            Hoje, Jordan tinha uma série de provas de artes a dar, seria um dia puxado em sua turma, uma vez que um grupo de estudantes faria presença na aula apenas para perturba a paz alheia. Esses “alunos” faziam parte de um grupo radical político, que praticavam atos vulgares nas matérias acadêmicas que não envolviam cálculo ou coisas semelhantes. Salas onde o grupo sabia que haveria forte retaliação. Portanto, escolhiam a sala de Jordan com freqüência. Hoje, porém, ele não permitiria que tirassem a sua paz.
            Em meio ao café da manhã, vestido em seu jeans cinzento, sapatos de mocassim e sua camisa de botões enfiada na calça, recebeu uma ligação. Era a médica que tratava de sua filha: Amanda Grace.

– Alguma emergência, doutora? – Sem “olá, alô” e afins. Se cansara dessas formalidades há tempos, quando lidava com o pessoal do hospital.
– Eu tenho que falar com você sobre uma escolha – Amanda foi direto ao ponto, curta e grossa.
– Mudar a menina de hospital? Já sugeriram isso umas dez vezes, mas chegaram sozinhos à conclusão de que seria arriscado demais.
– Não, não... É algo um pouco mais complicado, e algo mais fácil. Uma escolha, que apenas o senhor pode fazer e nos permitir ajudar como pudermos. Sabemos que a situação é delicada, então pode por favor vir até o hospital?
– Eu tenho sessões de provas hoje... – Jordan respirou fundo, meditou um pouco e estourou – Que se dane, eu vou. Minha filha é mais importante do que um bando de idiotas estudantis sem futuro – E desligou, bufando de raiva.

            Forçando-se a ligar para a Universidade Horace Stapleton, onde lecionava, deixou avisado de que teria de se atrasar. Por quanto tempo, não sabia. Mas assim que tivesse resolvido os problemas no hospital, estaria na sala sem falta. Responderam de forma calma, condescendente, o que só deixou Jordan mais e mais irritado.
            Pescou as chaves do carro num jarro de vidro cheio de doces, onde escondia até mesmo moedas, pois já tivera de lidar com invasão e roubo. Carregando sua grande maleta preta, a mochila nas costas, meteu-se no carro e saiu, dirigindo ao Hospital Memorial Howard Preston.



             “Eu poderia ter encerrado tudo aqui, pois aqui foi a primeira decisão errada que tomei, depois de ter alimentado minha filha com aquele lixo sintético super processado e nojento. Eu ainda sinto os resíduos daquela porcaria na minha língua, tanto tempo depois. Em três anos aquela droga ainda me dá náuseas, como se meu estomago se recusasse a digerir tudo pra que eu pudesse defecar de uma vez e me livrar disso do meu corpo.
            Não sei como não tinha a mesma alergia da minha menina, minha filha... Eu só sei que, se não tivesse sido egoísta, se não tivesse permitido que ela me fingisse me ajudar, nada disso teria acontecido”.



– Senhor Miller – Amanda estendeu a mão para cumprimentar Jordan, mas este reteve as mãos enfiadas em seus bolsos. Um minuto de silêncio constrangedor se passou até que a doutora Amanda recolhesse a mão num gesto de “sente-se, por favor”, que foi atendido pelo homem – Fico feliz que tenha atendido ao chamado com tanta pressa.
– Eu tinha escolha? – Seco, Jordan não queria papo furado, queria respostas – Que decisão é essa? Algum outro remédio em particular? Um tratamento com células tronco? Pode falar, desembucha, eu só quero a minha menina correndo de novo e ralando os joelhos como uma criança deve.
– Eu entendo o seu desespero... – Amanda ia dizendo, mas foi interrompida por Jordan.
– Você, no seu terno e jaleco impecavelmente branco, não tem idéia do que é desespero, minha querida. Eu tenho ainda uma sessão de provas pra um bando de moleques imaturos, numa universidade que, apesar de pagar bem, não dá a mínima pra minha sanidade e permite que um grupo de macacos de cabelos coloridos e piercings nojentos com roupa de menos venha à minha sala de aulas e comece com rituais abomináveis onde se pintam com o que dizem que é “sangue menstrual”. Não venha com eufemismos pra cima de mim. Vá direto ao ponto.
– Tudo bem... – Ela respirou fundo, surpresa. Já vira certos rompantes de raiva e impaciência do senhor Miller, mas dessa vez, ele parecia de fato farto da coisa toda. Uma oportunidade e tanto para trazer o assunto à tona. Ela buscou em sua gaveta dois envelopes amarelos, lacrados, sem nenhuma indicação do que continham – Nesses envelopes, senhor Miller, você tem a chance de decidir o destino de sua filha. No envelope da direita, há uma documentação que vai dar fim ao sofrimento dela. Não há melhora, não há sequer um único traço de melhora no estado de saúde da menina, e a essa altura, os tratamentos e medicamentos estão causando mais mal do que beneficio para ela. Então, com a papelada aqui dentro, você estará autorizando ao hospital, ou confirmando de que você tem a capacidade de dar à ela um fim sem dor, uma única injeção. E neste outro... – Ela olhou de relance para Miller para notar o vermelho de raiva em seu rosto fluindo como água – Há a documentação de um tratamento experimental. A chefe do programa é uma mulher chamada Amélia Beauvoir...
– Não pode estar falando sério – Jordan arrancou o envelope das mãos dela, abrindo-o com pressa.
– Senhor, você só pode abrir o envelope que escolher...
– À merda que você me dá ordens – Jordan respondeu ao protesto de Amanda, que encolheu em sua cadeira – Como é que vocês conseguiram entrar em contato com essa pistoleira?
– Como assim? Ela é uma pesquisadora renomada, é famosa por seus projetos de farmácia envolvendo fungos e vegetais.
– Essa miserável é a minha irmã – Jordan tinha um gosto amargo ao revelar tal informação – Vocês não têm idéia de com quem estão lidando.
– Mas ela ofereceu uma solução permanente para a sua filha, senhor Miller – Amanda ressaltou – Ela tem um remédio que é capaz de curar qualquer alergia. Já foi testado em outras pessoas, e a nova fórmula na qual ela está trabalhando promete grandes avanços na medicina. Se escolher o envelope dela, a solução que Amélia lhe oferece, sua filha voltará ao lar em menos de uma semana.
– Você não conhece Amélia.
– Qualquer desavença que você tenha com ela, deixe isso de lado. Pois a outra opção, é claro... A decisão é sua, senhor Miller.

            Jordan se levantou e andou pela sala, bufando um pouco e esfregando o rosto com as mãos nervosamente. Sempre que se via forçado a tomar uma decisão apertada, tão complicada e difícil, ele sentia a necessidade de esfregar o rosto. Um tique nervoso que desenvolvera depois da morte de sua esposa. E, é claro, sua irmã Amélia era um agravante à coisa toda. Odiava a irmã pelo que fizera, pelo que acontecera, mas agora...
            Não sabia bem o que decidir. Seria justo matar sua própria filha? Eutanásia? Apenas para que a menina não sofresse mais com remédios? Mas se havia cura, por que então ofereciam a ele essa escolha estúpida? Não seria por que pensavam que ele era um egoísta? Que mantinha a filha viva por que queria acreditar que ela poderia ser curada? Independente do sofrimento que causasse a ela?
            Talvez valesse a pena usar a irmã, depois poderia odiá-la o quanto quisesse. Culpá-la pelo crime dela, mesmo que tivesse salvado a vida de sua filha. Moly era sua família. E tinha de priorizar a pequena, se houvesse qualquer esperança que fosse. Mesmo que a outra escolha fosse “humanitária”, ainda havia uma chance e iria agarrar isso com os dentes se fosse necessário.

– Pode falar com a cretina da Amélia. Vou provar pra vocês que a minha menina ainda tem cura.

            Jordan pegou o envelope amarelo onde havia a documentação da eutanásia, rasgou-o na frente de Amanda, e o jogou na lata de lixo ao lado da mesa da doutora. Saiu do hospital furioso, pisando duro e no passo apressado.
            Sua paciência estava no limite. Não iria tolerar que ninguém tirasse sua filha dele. A menina tinha salvação, poderia se curar, mas o preço era dever à sua irmã. Um preço alto a se pagar, que estava disposto a ir até o fim.

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