Kekximus Maximus

Capítulo 3: Florescer



           
Jordan acordou e se levantou de sua cama velha. O colchão, cheio de poeira e de mofo inofensivo lhe dava crises de espirro, mas não podia fazer muita coisa além de bater a peça próximo à única janela que permitia deixar aberta para conseguir uma nesga de luz solar.
            Foi até seu fogão, e usou o pouco gás que sobrava no encanamento. Teria de vasculhar as lojas abandonadas por um suprimento maior, mas o que tinha agora era o bastante para um pouco de café e fritar um pouco de carne seca que tinha. Era pura sorte que esse prédio tinha um gerador de energia de emergência que funcionasse depois de três anos, mas a comida era uma complicação. Doces ele poderia conseguir tranquilamente, muitos deles sendo quase eternos devido ao enorme uso de químicos que os conservavam. Mel era outro alimento que achava em abundancia. Mas carnes... Esse era um problema, não havia mais muita carne onde quer que fosse. Mas carne seca, esta, sendo extremamente salgada e boa para conservar, guardar, congelar, essa Jordan conseguia achar aos montes, sendo necessário apenas cozinhá-la para remover a quantidade excessiva de sal.
            Com sua modesta refeição pronta, levou o prato e a caneca de alumínio para a mesa onde comia, e com seu caderno ali, preparado, a caneta ao lado, escreveu seu registro enquanto comia.
             “Eu poderia muito bem ter puxado os cabos que mantinham Moly viva. Não demoraria pro coração dela ser afetado, aquela alergia parecia algo rápido e definitivo, com os remédios sendo a única coisa que a impediam de morrer. Mas eu não fiz, a terceira oportunidade que tive de terminar tudo ali mesmo e impedir que o mundo encontrasse seu fim eu perdi porque tinha esperança.
            O tratamento que ela teve durou uma semana, e eu a visitava periodicamente em meio a aulas conturbadas. Meu amigo, Joffrey, me convidava pra passar as férias na fazenda dele, no Texas. Lá eu tive abrigo quando tudo começou a ruir, e teria sido bom se eu tivesse me aproveitado das investidas de Hilary, pois pelo menos teria outra coisa a fazer além de pensar em me matar.
            Mas a comida seria mais escassa pra duas pessoas”.



           
Jordan Miller estava em aula, havia passado na lousa um exercício simples de pesquisa, comparação e avaliação sobre arte clássica e como ela poderia ser revivida se a arte contemporânea parasse de ser motivada e estimulada. Ocupado em sua mesa, era o único professor a quem ninguém perturbava por ter uma caneca de café ao lado de suas coisas, no meio da aula. Os alunos achavam aquilo engraçado, até mesmo interessante, dando ao professor um ar de autoridade que outros não tinham por lá.
            Hilary, obviamente, ambicionava a autoridade do professor Miller para ela. Mordia a borracha de seu lápis, alheia à atividade que ele dera aos alunos, cogitando como se aproximar dele. Ignorava completamente o fato de que tinha uma filha, e a menina estava hospitalizada. E daí que era pai solteiro? Só queria transar com o velho e experimentar a experiência da idade dele. Como um bom vinho. Mas o professor Miller, obviamente, não dava a mínima, sendo mais atencioso com o trabalho e a filha que, ao que Hilary sabia, estava à beira da morte. Pelo menos é o que se dizia, e era o que queria acreditar.
            Mas como se aproximar dele? Como se aproveitar da situação para que o professor Miller finalmente aceitasse algo mais do que a relação “professor x aluna”? Seria bom usar de um pretexto para conversar com ele quando a aula acabasse. Quem sabe não descobria algo que pudesse aproximá-la dele? Quando o sinal tocou e os alunos arrumavam suas coisas para voltar para casa, o professor Miller levantou a voz para todos eles:

– Eu quero que me tragam as atividades amanhã, em folhas a parte. Lerei uma a uma suas respostas e haverá um questionamento oral de onde erraram e de onde acertaram – O que foi respondido por muitos resmungos de reclamação e outros de aprovação.

            Hilary viu ali a oportunidade que queria para ficar sozinha com o professor. Juntou suas coisas dentro de sua mochila, e andou devagar até a mesa dele. Jordan a ignorou até que ela estivesse perto o bastante para que o cheiro de seu perfume excessivamente doce chegasse até ele.

– Quantas vezes já não te pedi para não usar esse perfume desgraçado perto de mim, senhorita Hilary? – Jordan coçou o nariz enquanto voltava às suas anotações.
– Ah, sabe que o cheiro agrada – A garota reclamou.
– A quem?
– Ah, você sabe, rapazes.
– Isso fede mais a um repelente de pessoas sensatas, Hilary. Do que precisa, aliás? Eu estou terminando minhas anotações e vou ao hospital ver como está o tratamento de minha filha.
– Eu soube que o tratamento começou...
– Como soube?
– Uma mulher chamada Amélia apareceu numa reportagem, dizia que a fórmula que desenvolvera salvaria a vida de uma menininha...
– Inacreditável – Jordan bufou com raiva – Aquela cretina da minha irmã se aproveitando da situação pra se promover. Deixe de lado o que quer que você saiba disso, senhorita Hilary. É minha vida pessoal, e eu só vou tratar com você os assuntos da aula.
– Ah, por mim tudo bem... – Hilary deu de ombros, sentando-se à mesa e conseguindo um olhar impaciente do professor Miller – Se bem que eu ando precisando de aulas particulares.
– Garota, escute bem o que eu vou dizer – Jordan respondeu, a voz paciente mas cheia de autoridade – Aulas particulares são para alunos que vão mal nas aulas de fato, e não para alunos que se fazem de péssimos estudantes apenas para trepar com o professor. Eu sei como você se sai nas outras matérias, garota, então não venha com essa conversa pra cima de mim. Estou no limite da minha paciência, e a última coisa de que preciso é uma pirralha de dezenove anos que adora caras mais velhos. Eu vou recomendar ao diretor e aos psicólogos da Universidade que você seja transferida pra uma Universidade que dê prioridade pra problemas mentais – Jordan se levantou, guardando suas coisas sob o olhar surpreso de uma Hilary frustrada – E agora, se me dá licença, eu vou cuidar da minha vida. Recomendo que faça o mesmo.

            O professor Miller saiu da sala, tempestuoso com seus pertences, a outra mão segurando sua caneca de café que ele bebeu de um só gole. Não foi agora que Hilary conseguiu, mas uma informação vital foi descoberta: Amélia, a cientista e pesquisadora, era sua irmã. Quem sabe não teria apoio dela?
            Para Jordan, que voltava ao carro e jogava suas coisas no banco traseiro, o stress era palpável. Seu celular tocava, e era Joffrey, seu amigo de longa data. Conhecera Joffrey na época da escola, e ambos seguiram rumos diferentes, tanto que Jordan ainda vivia em Boston, e Joffrey havia se mudado para o Texas, e lá, era dono de uma loja de móveis e outros artigos caseiros. Conseguira tanto dinheiro que era dono de uma modesta fazenda. Pela conversa ao celular, Joffrey o convidava a tirar férias com Moly quando o tratamento terminasse. “É, é uma boa idéia”, Jordan respondeu pensando em como fugir do alcance de sua irmã. A idéia era conveniente, e prometeu ao amigo que pensaria a respeito.
            Quando chegou ao hospital, se preparou para ver o que havia para ser visto.



           
 “Foram dias de tratamento, de recuperação. Aquelas drogas de remédios e fórmulas que Amélia injetava em minha filha deixavam estranhos traços verdes, como teias de aranha, logo à superfície da pele. As manchas que continham aquela quantidade de pus por baixo, essas ficavam verdes, o pus era expelido com o que parecia o cheiro de couve-flor cozida. Uma coisa nojenta, fedia e precisava ser limpo o tempo todo conforme o pus escorria.
            Mas, inegável, a melhora dela começou a fluir pouco a pouco. Seu corpo se movia gradativamente mais e mais, a alergia recuava e cada vez mais ela dava sinais de que voltava ao normal. Mas havia um efeito colateral: seu cabelo, antes castanho claro, tornava-se verde. Eu briguei por dias com minha irmã por causa daquilo, curar Moly tudo bem, mas tingir o cabelo dela usando remédios era absurdo.
            Idiota que fui de achar que aquele era o maior de meus problemas.
            Quando estava, enfim, comendo sozinha e andando sozinha, os médicos me permitiram levá-la para casa. Me recomendaram, sob pedidos de Amélia (a quem eu não queria dirigir palavra) que um medicamento específico produzido para o tratamento fosse usado por até mais quatro dias. Depois, estaria tudo bem.
            Minha filha finalmente voltou. Não sem eu ter recebido uma visita indesejada em minha casa, o que decidiu que eu teria de ir à fazenda de Joffrey”.



           
À porta estava Hilary, a aluna, e Jordan suspirou de raiva ao ver a garota ali vestida como se para uma visita informal.

– Seja breve, garota, o que você quer?
– Ah, vim ver como está sua filha.
– Não temos nenhuma relação tão próxima assim que me faça cogitar a possibilidade de te permitir entrar na minha casa e interagir com a minha Moly.
– Eu até trouxe o meu irmãozinho pra brincar com ela, enquanto posso falar com você sobre a matéria que não entendi da última aula.

            O garotinho se escondia atrás das pernas de Hilary. Pelo que Jordan sabia, se chamava Austin, ou qualquer coisa parecida. Não que ligasse, não que fosse de seu interesse. Precisava era de se livrar daqueles dois antes que Moly visse uma criança da sua idade para brincar...

– Papai? – Moly vinha saltitando pela casa, alegremente enquanto exibia seu cabelo esverdeado e saudável – Quem são? Eles podem ficar?
– Moly... – Jordan respirou fundo, pensou em como dizer à filha que não havia possibilidade alguma de ficarem, mas vendo os olhos grandes e suplicantes da menina, não pôde fazer muita coisa – Sim, o garoto veio especialmente para brincar com você. Entrem... – E abriu caminho para Hilary e o irmão.

            Hilary seguiu seu professor pela casa enquanto Austin e Moly corriam para a sala para usarem os brinquedos que se espalhavam pelo chão. Jordan podia confiar no menino, era uma criança inocente como qualquer outra, uma pena ser usado como ferramenta pela irmã mais velha para que ela pudesse tentar seduzir um homem mais velho que tirara alguns dias de licença para cuidar da filha recém saída do hospital.
            Na TV, um programa de entrevistas passava e apresentava a “celebridade do momento”, Amélia, que mostrava os avanços de sua pesquisa no uso de cogumelos e fungos, com verduras, numa solução que curava doenças.

– Sua irmã é bem talentosa... – Hilary comentou enquanto seguia Jordan pela casa.
– Ela é a responsável pela morte da minha esposa, de um cão de estimação que eu adorava quando era adolescente, além de ser uma vagabunda de marca maior – Jordan respondeu impaciente – O maior talento dela é tentar destruir a minha vida, e ela não vai conseguir fazer isso.
– Ah... Eu não sabia...
– Não, não sabia – Jordan se virou para ela – Você nunca sabe, não sabe aceitar um não como resposta, não sabe que tenho uma filha pra cuidar e aproveitar que finalmente voltou do hospital, onde ela poderia ter morrido. Você tem alguma idéia do que está fazendo com o seu irmão? Usando o menino como um instrumento pra poder vir aqui e se alisar em mim?

            Hilary se encolheu um pouco, vendo que não seria bom fazer qualquer movimento brusco ou dizer qualquer coisa estranha. Tentou puxar alguma conversa sobre as aulas, o que durou cerca de vinte minutos de silêncio de Jordan e uma falação incessante de Hilary, mas foi interrompida pelo grito de seu irmão mais novo.



           
 “Aquele foi o momento onde, parando para pensar, a quarta e última oportunidade que tive estava chegando perto. Mas não havia mais tanto tempo de lambuja. O garotinho, Austin, se cortou com o papel onde desenhavam e minha filha meteu o dedo do garoto na boca, chupando o sangue dele ou qualquer coisa semelhante. Ela nunca fizera coisas assim, e admito, o comportamento dela nunca me pareceu estranho, mesmo depois do tratamento. É fato, ela passava mais tempo ao sol, comia exclusivamente verduras, frutas e vegetais, mas algo como aquela reação automática não era algo dela, que sempre se assustava com a mera visão de sangue. Eu não entendia o motivo daquilo, e não sei se teria feito diferença saber, eu poderia ter morrido bem antes e não passar por todo esse stress.
            Certo dia, eu estava no escritório, Moly havia terminado sua refeição e me pediu para sair pra brincar no quintal de trás de nossa casa. Eu disse que tudo bem, mas que voltasse mais tarde para tomar banho e dormir. Era fim de tarde, minha licença havia terminado, e eu ainda não pudera matricular a menina numa escola. Estava atolado até o pescoço de papéis e mais papéis pra resolver. Fiquei absorto numa documentação que só notei minha filha, mordendo nossa árvore no quintal, dez minutos depois que olhei com o canto dos olhos. Eu corri para o quintal, tirei Moly de perto da árvore e fiquei dez minutos praguejando e dando-lhe broncas, vendo que sua boca estava manchada de sangue por causa da casca da árvore. Mandei-a tomar banho e ficar em seu quarto, de castigo. Quando ela saiu correndo, com lágrimas nos olhos, eu olhei para a árvore e me assustei: um bom pedaço dela havia sido devorado. Minha filha devorara um pedaço considerável da árvore.
            Aquilo era um pesadelo, e eu liguei pra Amélia, xingar até onde não podia mais, amaldiçoar o estúpido trabalho dela, deixando que ficasse sem fala. Ela tentou se justificar, tentou me pedir pra levar a Moly até seu laboratório, mas mandei ela se foder e desliguei. Pelo que eu sabia, ela estava ocupada demais em outros trabalhos idiotas, e nos dias seguintes, eu descobri do que se tratavam: um fungo de super crescimento, comestível, que servia para transformar carne e alimentos a base de carne em alimentos vegetais. Na TV, uma entrevista mostrou a estúpida e idiota da Amélia transformar uma vaca inteira num arbusto de repolho e brócolis. Pelo menos pareceu-me que eram brócolis.
            Ela foi aplaudida pelos vários dias seguintes pela comunidade vegana. Devo dizer a coisa toda era muito hipócrita, uma vez que literalmente matavam um ser vivo pra transformar o coitado em um punhado de verduras que podiam comer. ‘Sem sangue, sem dor’, diziam. Pura besteira”. Ele bebeu um longo gole de seu café, cogitando se devia fazer mais uma porção de carne seca. Olhou pela janela brevemente, ouvindo os gemidos e gritos de comunicação deles do lado de fora.
            “Mas o pior estava por vir. E começou com o jovem Austin...”

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