Mais um final bem feito
Capítulo Final:
Desabrochar
Jordan apenas ouvia rumores pelos corredores do que acontecia. O
primeiro sinal que teve de que as coisas estavam indo mal era Hilary: ela
evitava se aproximar dele, especialmente nos corredores. Ouvira,
acidentalmente, alguns sussurros da garota que dizia que seu irmão, Austin,
desenvolvera uma fome enorme por vegetais e frutas, mas que sua mãe o pegara
mastigando grama do quintal. E que também ele havia, literalmente, mordido
alguns coleguinhas na escola.
Resolveu então perguntar à
Hilary o motivo daquilo tudo.
– Minha mãe foi ver a diretora, quando recebemos a ligação... – Hilary falava
baixo, sem jeito, como se não quisesse mais se aproximar dele – Pelo que ela me
falou, a diretora contou que o Austin confessou ter mordido alguns coleguinhas
que estavam comendo aquelas mini cenouras, sabe? Ele me falou depois que o
fizera pra pegar as mini cenouras...
– Entendo... Está dispensada – Jordan fez um gesto de mão a mandando voltar ao
seu lugar na sala de aula.
Aquilo era estranho, bizarro,
para dizer o mínimo. Isso sem mencionar que sua irmã agora investia seus
estudos em “plantações de gado”: usando o material genético dos vegetais criados
a partir de animais vivos, fazendas inteiras agora eram feitas com o intuito de
produzir a comida vegeteriana. Um “marco” na ciência, uma vez que pouco a pouco
mais e mais pessoas aderiam àquela culinária “inovadora”. Jordan via tudo isso
com um misto de desprezo, cogitando mais e mais abandonar tudo e ir viver com
seu amigo Joffrey em sua fazenda no Texas. Pelo menos ele não havia se rendido
às plantações de gado e ovelhas.
Conforme os dias iam passando,
sua filha comia mais e mais vegetais, frutas, verduras, e tinha de impedi-la de
sair para o quintal para que não comesse nem a árvore nem a grama. A menina
continuava a comer mais e mais, então, tinha de comprar estoques grandes de
verduras, vegetais e frutas. Estava se tornando custoso alimentar aquela fome
toda. Foi forçado a processar sua irmã, por ter causado na menina um efeito
colateral além do que havia sido dito que seria normal, o que ele conseguiu
dentro de poucas semanas.
Mas, em semanas, coisas piores
aconteceram.
“Foi durante o verão mais quente de que tenho
memória em minha vida”, continuava seu registro, um novo prato de carne seca ao
seu lado e nova caneca de café, “que toda a tempestade infernal nos atingiu a
todos. O comércio da estranha fórmula de Amélia atingiu o mercado
internacional, e assim sendo, todos os países com interesse em expandir o
mercado da horticultura agora tinham um novo nicho a se explorar. Mas não durou
muito.
Mas os problemas começaram aí.
Primeiro, as pessoas que consumiam essa comida vegetariana fabricada a partir
da fórmula mágica de Amélia adoeciam rapidamente. Ficaram de cama,
hospitalizados, por dias até melhorarem, como que do nada, os cabelos
estranhamente esverdeados. Os médicos diziam que os exames revelavam uma sutil
mudança genética, que aumentava gradativamente e os fazia se alimentarem
exclusivamente de comida de origem vegetal. E a tendência era apenas a aumentar
o apetite e expandir o cardápio, pois havia relatos de gente comendo árvores
por aí.
Foi quando as plantações de
gado expeliram os malditos esporos, que tudo se perdeu. Foi quando Moly
mudou...”
Jordan correu pelas escadas, seguido por Moly que tentava
agarrar suas pernas. Ela corria e saltava como um animal, gritando enfurecida
com uma centelha verde a queimar nos olhos outrora azuis. Jordan não sabia o
que fazer, do nada, quando a impedia de devorar a maldita árvore, a garota
tentou atacá-lo sem prévio aviso. Tinha de fazer algo, pois era evidente que
sua filha tentaria matá-lo se pusesse as mãos nele.
Mãos... Seus dedos tinham uma
força animalesca e agora exibiam garras, não eram mais mãos comuns. Ele tinha
de prender a menina, levá-la dali... Por quê? Não era mais sua filha. Prendê-la
para quê? Tinha de tentar, pelo menos. Com um metro e noventa de altura, Jordan
podia pular e puxar a cordinha que dava acesso ao sótão de sua casa. Correu
novamente subindo escadas e buscou em meio a inúmeros baús qualquer coisa que
pudesse usar para se defender. Achou seu velho taco de golfe, de cabo firme e
metal reluzente. Foi quando ouviu movimentação brusca atrás de si que Jordan
virou-se num golpe repentino e violento com o taco, sem pensar duas vezes.
Mas se arrependeu no momento
em que viu o resultado: Moly estava tendo espasmos de dor ao chão. Não sabia se
tinha acertado forte demais, ou forte o bastante, mas com certeza, ainda era
uma criança e a pancada fora aplicada à cabeça com um movimento forte guiado
pelo instinto de sobrevivência. E ele não podia ficar parado por tempo demais:
buscou mais algumas coisas no sótão, e achou uma antiga rede de pesca, com a
qual prendeu Moly e, depois, enrolou-a com um enorme lençol velho e a deixou
lá, descendo as escadas do sótão e indo atrás de seu celular. Tinha de falar
com Joffrey, e tinha urgência para isso.
– Vamos, Joffrey, atenda de uma vez, homem... – Jordan reclamava ao telefone
pela demora da chamada, até que finalmente foi respondido.
– Jordan, por Deus, onde você se meteu esse tempo todo? – Joffrey falava com a
voz apressada, evidenciando sua ansiedade – O mundo está enlouquecendo, achei
que tivesse morrido!
– Ainda não, Joff, ainda não... – Jordan olhou brevemente para o alto – Eu
preciso ir até aí, um lugar pra me esconder e pra proteger a nós dois e minha
filha.
– Não vejo por que não, eu contratei um pessoal que anda atirando nesses
malucos que correm até aqui. Toda a minha plantação foi pro ralo! Devorada como
se por coelhos! Dá pra imaginar?
– Dá, dá sim, você não tem idéia de como eu sei do que você está falando. Tem
suprimentos o suficiente? Posso levar alguns daqui, nem que seja às pressas.
– Tenho, sim. O pessoal que veio pra cá trouxe um bom estoque, mas mais nunca é
demais.
– Ótimo, chego aí em poucos dias – E desligou.
Era hora de se apressar. E não
gostou nem um pouco do que seria forçado a fazer para levar Moly com ele. Agarrando
o cabo do taco de golfe com firmeza, ele se dirigiu para o sótão, devagar,
respirando fundo e mentindo para si mesmo de que aquilo era o melhor a se
fazer.
O saco que prendia Moly se
movia com violência, a menina tentava, e falhava, sair de sua prisão de tecido.
Mas não demorou para que Jordan fizesse o taco de golfe assoviar pelo ar, e
bater. Uma vez, duas vezes, três vezes. Jordan acertou a própria filha com
força o suficiente para desacordá-la. Se funcionou como esperava, só podia ter
esperança de que sim. Pôs o saco nas costas, carregou-o escada abaixo, até a
garagem, e jogou-a no porta-malas de seu carro. O próximo passo era recolher
roupas para eles, em todas as malas que pôde encontrar, junto com toda a comida
não perecível a que tinha disposição nos armários e na dispensa.
Depois, eram as chaves do
carro, colocar tudo em ordem, e dirigir. Sua primeira parada era no shopping,
onde podia pegar o que pudesse agarrar para se proteger, proteger a filha e
todos os suprimentos que estivessem soltos por aí. Proteger a filha... Àquela
altura, era meramente um instinto, nada além de uma necessidade psicológica
para manter a cabeça no lugar e não enlouquecer. Pelas janelas do carro, viu o
caos espalhado e incorporado numa massa de agitação: pessoas corriam e fugiam,
sendo brutalmente atacadas e mortas, pelo simples fato de não serem
vegetarianas como as outras, as coisas mutantes que haviam se infectado com os
vegetais de Amélia. Esses vegetais causaram reações químicas nas pessoas, que
as deixavam mais propensas a comer vegetais. O problema é que a dependência dos
nutrientes contidos nos vegetais tomava controle do cérebro das pessoas, e
logo, estavam devorando árvores, raízes, gramas, arbustos venenosos, tudo o que
continha clorofila ou fazia fotossíntese.
Mas ainda faltava uma peça
nesse quebra-cabeça, e ligaria para Amélia para descobrir o que dera errado. E
Jordan o faria quando estivesse a quilômetros de distância, em segurança.
Enquanto dirigia para o
shopping, viu Hilary fugindo de seu irmão e de um grupo de crianças. Cogitou se
valia a pena ajudá-la, mas como até agora os mutantes estavam ignorando sua
existência, resolveu deixar para lá. Não era hora de resgatar mocinhas fogosas
em perigo. Olhou pelo retrovisor, e a última coisa que viu foi a pobre Hilary
sendo mutilada pelas crianças com mordidas violentas.
No shopping, viu um cenário de
fim de mundo: tudo destruído, muita coisa já saqueada, jogada ao chão. Vitrines
quebradas, corpos agonizantes de pessoas que foram pegas no caos inesperado,
vários pequenos focos de incêndio aqui e ali, espalhados como grandes flores
alaranjadas que se moviam sozinhas. Foi com essas fogueiras improvisadas que
descobriu que os mutantes evitavam o fogo, tinham medo dele. Melhor para
Jordan, afinal. E ele recolheu tudo o que pôde: cereais, doces, encontrou
vários coolers onde podia colocar várias carnes e outros frios, pães, evitou
tocar em vegetais, até porque não havia muitos vegetais. No lugar deles,
estavam estranhas flores arredondadas, vermelhas e de aparência demoníaca, que
expeliam, a cada quarenta segundos cada, uma pequena nuvem de esporos e pólen.
O que poderia ser aquilo, não sabia. E não tinha nem tempo nem disposição para
descobrir ali, sozinho, sem ajuda.
Também teve de parar em um
posto de gasolina e conseguiu vários galões de combustível, o suficiente para
chegar ao endereço de seu amigo Joffrey. Teve de apertar tudo no porta-malas e
bancos traseiros, e sabia que Moly ia ser esmagada em baixo de tanta coisa, mas
isso realmente importava agora?
Jordan sabia que não. Então,
ele dirigiu, e ignorou todo o resto.
Só havia uma última coisa que
tinha de fazer: ligar para Amélia. Aquilo tudo, sabia, era culpa dela, mas não
ficaria tranqüilo enquanto não soubesse como sua irmã havia arruinado o mundo.
Supondo que estivesse viva ainda, não custava tentar ligar para ela e
insultá-la dos piores nomes possíveis assim que obtivesse a resposta que
queria.
– Alô? – A voz dela era assustada, trêmula, como se estivesse se escondendo de
algo.
– Alô uma ova, sua vagabunda ambientalista de merda! – Jordan rosnou entre os
dentes para a irmã – Me fala que merda você fez naquela droga de fórmula
científica!
– Jordan, por favor... – Amélia pediu, chorosa – Eu não sei o que aconteceu,
tudo tinha dado certo nos testes, os ratos responderam muito bem ao uso do Ophiocordyceps.
– Ophio... O quê?!
– É um fungo que mantém a matéria genética de um hospedeiro, principalmente
formigas, ao custo do material cerebral do mesmo. Nenhum rato virou um zumbi
controlado pelo fungo, apenas insetos!
– E você não parou pra pensar, na porra da possibilidade, de que a merda de um
fungo poderia evoluir e se tornar mais forte e se adaptar a organismos maiores?
Vamos fazer o seguinte, sua vagabunda: quer apostar a sua vida, de que quando
for checar os malditos ratos com o seu ajudante ou quem quer que fosse estúpido
demais pra trabalhar com você, de que os malditos roedores agora estão fora de
controle?
– Jordan, por favor... Não faz isso, pode vir me tirar daqui?
– E pra quê?! – Jordan gritou ao celular, causando na irmã um acesso de choro –
Você destruiu a minha vida desde que éramos pequenos! Abusou de mim, matou meu
cão, matou minha esposa, e agora transformou a minha filha no maldito messias
vegano da sua propaganda de merda que vai destruir o mundo todo! Por que diabos
você acha que eu iria te salvar? Já estou a muito longe de Boston, você que se
vire!
– Não! Jordan! Sou sua irmã! – Ela ainda implorou em meio a soluços e
choradeira.
– Minha única família era minha filha, e até isso você tirou de mim! Você que
aproveite as cenouras desses monstros, sua vadia! – E desligou o telefone.
Jordan gritou ao volante,
acelerando o carro e suportando toda a loucura da situação. Gritou até sua
garganta doer e começar a tossir. Não sentiu lágrima alguma, já gastara todas
as lágrimas que tinha quando sua esposa morreu, quando sua filha estava à beira
da morte. Agora, não precisava mais chorar. Precisava gritar.
Tentou colocar uma música no
rádio, mas desistiu. Não havia uma única estação funcionando.
A viagem seria longa...
“A viagem demorou mais do que
eu esperava. Havia muitos daqueles mutantes nas ruas, eu precisei atropelar
vários deles. E eu via, por onde antes havia várias florestas, campos de
fazendas, não havia mais nada que não fossem as bizarras flores. E eu acabei
vendo para quê elas serviam: os esporos, eles rapidamente se espalhavam e eu vi
uma vaca desafortunada chegar perto demais. No minuto seguinte brotavam folhas
de seu corpo, cogumelos, repolhos, tudo o que você pode imaginar.
Ainda havia carne no pobre
animal, mas foi rápido demais, ela não conseguiu fugir da horda de mutantes que
partiu para cima dela. O mais irônico de tudo era que eles comiam os vegetais
ignorando o sangue e a carne contida neles.
Hipócritas”.
Quando Jordan chegou à fazenda de Joffrey, tudo estava muito bem
protegido, e ele foi muito bem recebido pelo amigo e os amigos dele. Todos
armados, espingardas, pistolas, e aceitaram muito bem a informação de que o
fogo afastava os mutantes. Jordan foi questionado várias e várias vezes sobre o
que havia guardado naquele enorme saco, ao que ele dizia “algo de que eu não
podia me livrar”, e Joffrey se perguntava o que acontecera à filha dele.
Meses se passaram até que,
enfim, Moly acordara. Jordan não sabia como lidar com aquilo, sequer entendia o
motivo de ela ter dormido por tanto. “Dormido”, um eufemismo um pouco grande
para o fato de ele ter nocauteado a menina com golpes violentos de um taco de
golfe. Ela apresentava hematomas onde Jordan a acertou: cabeça e mandíbula.
Mas, estava inteira, e estranhamente, bem: não apresentava nenhum fator de
mutação a não ser o cabelo verde. Nada da centelha nos olhos, nada das garras
afiadas, da expressão maligna e semi-viva do rosto: era sua filha novamente.
Joffrey a recebeu com um
sorriso no rosto, mas uma expressão suspeita nos olhos. Os outros membros da
casa a viram com certo espanto, mas como Jordan acalmou a todos (e prometeu a
Joffrey uma explicação tardia) todos ficaram satisfeitos. Além do mais, a
refeição seria servida em breve naquela noite, e Jordan estava sentado à
varanda, de onde podia ver a larga barricada que ajudou a construir no tempo em
que esteve ali.
– Posso me juntar à
você?
– Claro, claro... – Jordan acenou com a mão – Além disso, eu devo uma
explicação.
– Deve, deve sim... – Joffrey suspirou, cansado – Ela estava trancada, esse
tempo todo, no seu quarto, dentro daquele saco esquisito, não é?
– Sim, estava sim... – Jordan bufou, resignado.
– Quer me dizer por quê?
– Bem, você sabe que ela teve de fazer um tratamento especial pra alergia dela,
não é? – Ao que Joffrey confirmou – Ela apresentou alguns efeitos colaterais,
depois. Só comia vegetais, passava tempo demais ao sol...
– E o cabelo verde, também?
– Sim, sim, isso também... Passou um tempo, e por alguma razão ela brincava de
pés descalços em qualquer lugar onde podia achar terra, sabe? E teve aquele dia
onde eu a vi comendo a árvore em nosso quintal...
– Está me dizendo, Jord, que sua filha é uma dessas mutantes esquisitas?
– Ela era. No dia em que eu fugi de Boston, ela me atacou em casa, no dia que
te liguei, se você se lembra. Eu tive de acertar a menina com meu taco de
golfe. A reação inicial dela foi tremer de dor no chão, o que me deu tempo pra
amarrar ela dentro de uma rede de pesca e de um velho lençol. Eu ainda bati
nela mais umas vezes, talvez cinco golpes, e ela apagou. Achei que estivesse
morta, e hoje eu iria checar para ver. Quando ela acordou, normal como sempre
fora... Ou pelo menos quase normal, o cabelo ainda verde.
– Está querendo me dizer, que a sua filha, presa naquele saco, podia muito bem
não ser a Moly de sempre? Que ela poderia ter continuado uma aberração daquelas
nas quais a gente vem atirando há tanto tempo?
– Poderia. Mas não é. Eu fico feliz com o resultado que tive, ela está normal
novamente. Mas não creio que sair distribuindo pancadas na cabeça dos outros vá
resolver o problema.
– O problema, Jordan – Joffrey respirou fundo de consternação – é que sua filha
era um desses mutantes, e o que acontece se ela tiver uma recaída ou sei lá?
Não sabemos como essa droga de vírus ou doença, o que quer que seja, funciona.
Como vamos fazer? Você teria a coragem necessária pra... “Se livrar dela”? –
Joffrey fez aspas com os dedos, o olhar cansado e os ombros tensos – Se ela
ameaçar a vida de todos aqui, a sua inclusive, você vai ser forte o bastante
pra dar cabo da vida dela?
Jordan respirou fundo, aceitou
o prato de cozido de carneiro que um dos caseiros lhe trouxe, e olhou para
frente, para o anoitecer. Não saberia responder de forma clara, a dúvida vinha
consumindo sua consciência há muito tempo. Mas tinha de dizer algo para
tranqüilizar Joffrey.
– Sabe, Jof... Eu tenho certeza de que se alguma coisa acontecer, eu vou dar um
jeito eu mesmo.
– Vou confiar na sua palavra, Jord – Joffrey respondeu, suspirando – Eu quero
acreditar que sua filha está bem, que está curada, sabe? Mas o medo é o que
fala mais alto.
– Lamento ter mentido pra você, Joff. Lamento mesmo, mas teria me aceito aqui
sabendo que eu carregava minha menina com aquele maldito “problema”?
– Honestamente? Sim. Mas a teria acorrentado no porão.
Ambos riram daquilo, e
aproveitaram o jantar. Do lado de dentro, podiam ouvir uma gritaria e risadas,
a maioria vinda de Moly. Por um momento, Jordan sentiu-se relaxado. No fim do
mundo, enfim, ele teria paz antes que tudo terminasse.
“Nós passamos os meses seguintes do primeiro
ano da praga nos protegendo, e caçando coisas que ainda não haviam sido tocadas
pelos esporos. Pouco a pouco descobrimos as fraquezas daquelas coisas, como nos
limpar caso fossemos atingidos por eles, as diferenças entre uma flor e outra,
o tempo que os esporos demoravam a florescer em certos organismos. Até mesmo
concreto não estava a salvo, com a cidade já tomada por uma densa camada de
grama e musgo, e muitos lugares com claras marcas de dentadas. Havia até mesmo
dentes espalhados nesses focos, como se os donos tivessem mordido ‘algo duro
demais’.
Que ironia. Doce ironia...
A coisa toda piorou no segundo
ano. Foi quando um dos caseiros de Joffrey começou a ter atitudes estranhas pra
cima de minha filha. Eu tive de ver para crer...”.
Jordan acordou de súbito, ouvindo Moly gritar em seu quarto, ao
lado do quarto dele. Levantou-se apressado e agarrou um taco de basebol que
sempre deixava ao lado da cama, e correu até lá. Abriu a porta num chute, sendo
seguido por Joffrey (que ouvira a correria e o grito também), e lá estava um de
seus caseiros, Nicholas, agarrando Moly pelos braços, com o jeans meio aberto e
a menina com uma expressão de puro horror no rosto.
Jordan não pensou duas vezes,
ignorando os pedidos de Joffrey atrás dele: ele bateu em Nicholas com o taco
várias vezes, até que dois outros caseiros o agarraram e o tiraram de perto de
Nicholas, e Joffrey carregava Moly no colo.
– Maldito filho da puta! O que queria com minha filha?!
– É a porra do fim do mundo, cara! E se formos os últimos humanos saudáveis na
Terra?! – Nicholas cuspiu sangue junto com dois dentes.
– Tá querendo dizer o quê?! Tá querendo se aproveitar da minha menina?
– Ela é a única garota aqui, cara! E daí que é sua filha? Não vamos durar pra
sempre aqui, e quando aqueles monstros morrerem? Seremos os últimos na terra? A
humanidade vai terminar de vez?! Eu não vou deixar!
Jordan explodiu de raiva num
urro de ódio, avançou para cima de Nicholas, e ninguém foi capaz de tirá-lo de
cima do rapaz enquanto o homem furioso não tivesse visto o último espasmo de
vida nos dedos dele, se movendo com tremores até parar. Jordan respirava fundo
ao fim de tudo, olhando para o que antes era o rosto de Nicholas, destruído e
massacrado. O taco em sua mão estava sujo de sangue e com pedaços de carne
grudados nele, mas ele não se importava. Se virou para os outros, ordenou que
removessem aquele cadáver dali e o jogassem perto de um dos aglomerados de
flores na cidade.
– E se alguém me questionar, se alguém tiver a audácia de pensar como ele –
Apontou o taco para o cadáver de Nicholas – Vai terminar igual.
E saiu, pisando duro e
bufando. Ficou por duas horas no banho, ouvindo o resto do pessoal da casa
trabalhando, com comandos de Joffrey e algumas reclamações dos outros.
As semanas, meses seguintes,
foram seguidos de um ar de tensão extremo. Jordan tomava conta absoluta de sua
filha, impedindo que todos os outros do grupo se aproximassem dela, sob
qualquer circunstância. Se ela se machucava, ele é quem cuidava. Se estava com
fome, ele era quem cozinhava para ela. Se precisava de algo, pedia que ficasse
quietinha em seu novo quarto, trancava a porta e saía na companhia de outro
caseiro, enquanto pedia a Joffrey que cuidasse do comportamento dos outros, e
aplicava um tratamento de puro medo em cada um dos rapazes.
Isso, até começar a sentir a
paranóia gritar em seu ouvido. Ele sempre ouvia os sussurros (ou acreditava
ouvir) dos rapazes de Joffrey, dizendo que a menina poderia ter uma recaída,
virar uma mutante em breve, ou de como poderiam se aproveitar dela quando ele
não estivesse olhando. Jordan se sentia tenso, cheio de ansiedade por causa da
suspeita. Então, resolveu eliminar, um a um, até que pudesse confiar apenas em
Joffrey.
“Eu matei um por um dos outros cinco rapazes
de Joffrey. O primeiro eu fiz com que caísse num agrupamento das flores.
Ninguém mais viu o que aconteceu, éramos nós dois, ali, apenas, e foi fácil
dizer a ele que eu ouvi os gritos de socorro de alguém. Ele caiu feito um pato
idiota, e eu acertei a cabeça dele com o bastão que eu carregava.
Outros dois, num outro dia, eu
precisei de mais artimanha. Estávamos todos na cidade, à exceção de Joffrey e
Moly, presos em casa, e eu pretendia eliminar só um, mas acabei com dois. Um
grupo dos mutantes (nenhum de nós os chamava de zumbis) veio pra cima de nós, e
fugimos para um lugar alto. Quando aqueles dois, Greg e Chris, se não me
engano, tentaram subir, eu simulei que a escada se rompera com um chute
discreto, derrubando ambos no meio da horda. Não foram devorados, foram mortos.
E enquanto os outros dois fugiam, eu vi algo estranho... Alguns mutantes
traziam as flores em suas mãos. Aquelas eram diferentes: mais parecidas com
cogumelos, de fato, e eram mais avermelhadas do que as outras. Não fiquei para
ver o que aconteceria depois, eu supus o suficiente pra adivinhar.
Os últimos dois deram
trabalho. Um eu precisei amarrar e usar como chamariz, enquanto o outro vinha
em seu auxílio. Com uma espingarda... Dois de uma vez. Jogo fácil. E eu não
sentia remorso algum. Joffrey não suspeitava de nada. Moly estava segura, sem
sinais de ser uma mutante.
Ou é o que eu esperava”.
Foi numa manhã de setembro do segundo ano após o contagio
global. Jordan tentava recapitular tudo o que podia acerca do mundo: ainda
funcionavam pequenos governos, um a um caindo, sociedades inteiras destruídas e
transformadas em mutantes devoradores de vegetais. Parte da vegetação do mundo
havia sido completamente devorada, sendo substituída pelos bizarros vegetais
que nasciam dos esporos das flores, que eram comidos pelos mutantes. Uma
estranha relação de parceria entre os mutantes e as flores fungais bizarras.
Ainda existiam algumas redes
de TV funcionando, mas a internet já não funcionava mais. Jordan assistia a um
noticiário independente que funcionava no intuito de informar os pouquíssimos
sobreviventes afora nos Estados Unidos, coisa rara, se considerar a escassez de
comida decente, digerível para humanos normais, as atividades freqüentes dos
mutantes, indo e vindo, devorando tudo que viesse na forma de vegetais. A
transmissão ocorria normalmente, e Jordan comia tiras de carne seca, quando
ouviu Joffrey gritar na cozinha.
Jordan correu apressado, já
imaginando o que teria ocorrido. Não estava preparado o bastante para a cena em
questão: Moly segurava uma faca em sua mãozinha, que subia e descia na garganta
de Joffrey, que já não gritava mais. A menina exibia uma postura selvagem, e
não mordia como os outros mutantes, mas não era mais a mesma.
– Docinho, largue essa faca e vamos conversar... – Jordan tentou dialogar com
ela, falando devagar, mas apenas atiçou a menina.
Moly rugiu feito um cão
ensandecido, mas não avançou na direção dele: se jogando contra uma janela, ela
fugiu, a faca ainda nas mãos, deixando Jordan com o cadáver de seu amigo
Joffrey estirado no chão da cozinha, como um peixe morto. A última expressão em
seus olhos era pior do que medo: era a clareza de saber que aquilo aconteceria,
cedo ou tarde. Quase uma alegria mórbida ante a confirmação de suas suspeitas.
Ficou parado, estático, por
vários minutos, até começar a pensar no quê fazer. Precisava agir rápido,
recolher o que podia de suprimentos, e sair dali. Pegou todas as armas que
encontrou, toda a munição que sobrara, toda a comida que conseguiu carregar na
picape de Joffrey. Infelizmente não havia como sepultar o amigo, não havia
tempo. Se Moly voltara a ser o que nunca deveria ter se tornado, ela talvez
chamasse a atenção de outros mutantes na cidade, o que era muito provável visto
que os malditos se comunicavam e usavam estratégias de caça inteligentes para capturar
qualquer humano normal e desavisado.
Mas Jordan não era desavisado,
e àquela altura, um assassino, um paranóico, pai de uma mutante, já não era
mais normal também.
Colocou tudo o que conseguiu
reunir da casa na picape, pegou as chaves, deu um último adeus à Joffrey,
confessando de forma simbólica numa folha de papel escrita às pressas que fora
ele quem matou os outros cinco rapazes da casa, e se foi. Pisando fundo no
acelerador do veículo, só parou quando não havia mais combustível, e não tinha
muita idéia de onde estava.
“Eu passei os três meses seguintes viajando a pé,
até achar uma cidade. As placas diziam El Paso, e a cidade em si era um monte
de destroços, corpos e plantas. Ainda havia comida boa nas prateleiras das
lojas, e havia carros, aqui e ali, dando sopa por todos os lugares. Havia até
um carro blindado da polícia, que eu fiz questão de saquear. Quem iria me
prender, afinal? Não havia mais governo, não havia mais polícia, não havia mais
economia. Não havia nada, apenas a voracidade daqueles mutantes comedores de
capim malditos.
Eu viajei até Las Cruces e
subi pelo Novo México, talvez eu estivesse tentando chegar até Albuquerque, não
sei. Mas quanto mais longe de Dallas eu estivesse, melhor. Eu tinha um
pressentimento medonho de que Joffrey voltaria pra me matar, assim como Moly,
com certeza, ainda lá fora, estava andando por aí, vindo atrás de mim.
Foi três meses depois do
incidente, que Joffrey finalmente veio. Não sei como, não sei quando, mas ele
vinha com um bando, correndo feito um animal. Em uma mão carregava um tomate
que ele ia comendo enquanto andava, na outra, um pepino, que ele também comia e
se sujava todo com o suco daquelas verduras. Eu tive de me esconder o melhor
que pude, pois minhas roupas estavam sujas ainda com um pouco de pólen, eu
cometera o erro de tentar cortar algumas daquelas malditas flores que estavam
ao pé de um esconderijo temporário, e jogar água não ajudou muito, pelo menos
não havia nenhuma berinjela crescendo em mim. Mas Joffrey pôde me farejar,
tenho certeza disso, pois olhava ao redor como se me procurasse.
Uma pena pra ele que eu tinha
um revólver Desert Eagle carregado e destravado. Uma pena mesmo.
Depois que acabei com ele,
ouvi uma movimentação estranha ao meu redor, e havia vários dos mutantes
correndo ao redor do barracão, e tudo o que eu podia fazer era me esconder, não
sem antes preparar uma armadilha. Pois havia ainda vários galões de gasolina e
álcool naquele barracão, e eu pretendia levar tudo aos ares, com um tiro. Me
escondi bem, num lugar onde podia fugir.
E não dei chance de me
farejarem: atirei sem dó em três dos barris, e corri, assim que vi as faíscas
queimando no ar. Mas me arrependi, pois vi, num relance de olhar com o canto
dos olhos, Moly, ali também. Nunca descobri se ela fugiu ou não, e não sei se
me importo com isso.
Agora, em Phoenix no Arizona,
eu tenho vivido os últimos meses como um animal. Eu caço o que consigo das
lojas de conveniência, mato aqui e ali um mutante que tem o azar de cruzar
comigo, queimo seu corpo, e fujo. Venho à esse hotel abandonado pra me
refugiar, e fico pensando, todas as noites, se eu tivesse matado Moly naquela
casa de fazenda em Dallas, antes de ela matar Joffrey. Teria adiantado alguma
coisa? Fora minha última oportunidade... Mas já não estava tudo perdido? Que
diferença faria? Talvez pra minha consciência, é claro, mas o resto...
Não sei. Não sei de mais nada.
Minha vida, se é que chamo de vida, chegou a um estado estagnado onde não vejo
razão pra continuar existindo...”
Parou. À porta, ouvia pancadas
batendo com força total, talvez mais de um mutante. Finalmente o acharam,
escondido ali. Entraram sem fazer barulho, e como o fizeram não importava. Para
Jordan, era o fim. Mas pretendia levar pelo menos dois deles com ele para o
inferno, se necessário.
Ele andou pelo quarto, pegou
sua arma e apontou em direção à porta. Mirou bem, enquanto via as dobradiças
dela rangerem, as barricadas que usara para reforçar pouco a pouco cedendo. Ele
respirou fundo, e...
– Papai, abra a porta – A voz de Moly soou atrás da porta.
Jordan engoliu em seco,
respirando fundo e deixando a surpresa correr pelo rosto. Um fim amargo, com
certeza, mas não esperava que fosse ela, ali, atrás dele.
Jordan esperou, e esperou,
esperou. Até que a porta foi arrebentada das dobradiças.
Fechou os olhos, apontou a
arma para a própria cabeça, ignorou o chamado enganoso da filha, que não era
mais humana.
“Você não é a minha Moly”, ele
pensou consigo mesmo, antes de respirar fundo uma última vez.
Puxou o gatilho.
fim
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